#01 Aquilo que eu não aprendi com o "sagrado feminino"
mas compreendi com as mulheres que atravessaram meu caminho
Em meados de 2017, ouvi falar sobre um movimento coletivo feminino que se reunia todas as terças feiras, em Santos-SP, a cidade que morei por exatos 20 anos, para partilhas e trocas sobre ter nascido mulher nos tempos atuais.
Eu sempre fui de poucas amigas e nunca me senti acolhida nessa cidade, por mais tempo que vivesse nela e por mais qualidade de vida que o “mar na porta de casa” poderia me trazer. Minha melhor amiga era uma mulher independente e desenrolada, com pensamentos contraditórios de suas ações - constantemente, quando estava cansada da sua rotina infernal, soltava sem nenhum pudor: quem mandou aquelas mulheres queimarem o sutiã?
Eu sabia que não poderia discutir feminismo com ela no auge do seu cansaço por ser uma mulher de 17 anos que precisava se virar demais depois que decidiu viver longe da sua família.
Na cabeça dela, existia um alívio em pensar que em alguma realidade, mulheres não precisariam ser fortes como ela costumava ser.
Ainda que eu compartilhasse minhas frustrações em nossas quartas de fofoca, não era da minha natureza aceitar viver atrás de uma linha invisível, da qual eu sabia que teria dificuldades em cruzar só por ser mulher.
Eu precisava cruzar essa linha, já que eu era mais uma filha desse mundo grande sem pai presente.
Ao longo dos anos, fui tomando nota de cada parte desenhada estrategicamente para benefício dos homens: formato de cadeiras, a paz de sair na rua a noite sem ser assediada aos 12 anos de idade, banheiros de ônibus e mitologias sobre deusas e humanas violentadas - para a mulher não sobrava nada.
A ideia de uma comunidade de mulheres alegrou meu coração.
Meu primeiro contato com o “sagrado feminino”
Em 2017 eu estava lecionando na faculdade que me formei como enfermeira, e poderia facilmente passar meses sem mudar o itinerário da minha vida. Todos os dias quando eu acordava, tinha o privilégio de pegar o carro que comprei em prestações para pagar nos seguintes quatro anos, dirigir pela orla da praia e pensar - nem o mar, que eu sempre amei me abraça nesse lugar.
Sutilmente, meu desconforto era revestido de inúmeros privilégios, ainda que fosse um desconforto.
Em uma terça feira da tal “roda de sagrado feminino”, peguei meu carro, um March 2012 que meu amado primo Ricardo chamava de Márcio e que menos de 1 ano depois, seria vendido para pagar uma viagem pela Bahia - e dirigi até o local.
Cheguei uma hora antes do combinado e esperei na recepção do que parecia uma grande Shala de Yoga.
Mulheres entraram com suas saias esvoaçantes e eu me lembrei que não tinha me atentado a o único pedido daquele convite do facebook: vá de saia. Me senti envergonhada mas pensei - “Você já está aqui Gabriela, não pode desistir agora.”
Às 19 horas, uma mulher nos convidou para entrar em um espaço mais reservado. Lavignia tinha seus quarenta e poucos anos e cabelos ondulados já exibindo alguns fios grisalhos - sempre quis ter cabelos grisalhos como minha bisavó Afonsina, uma cigana cujo a personalidade é sempre comparada a minha em festas de família.
Nessa sala decorada com flores, tambores e cartas de tarô, eu e cerca de dez outras mulheres nos reunirmos em roda, próximo a um altar de Deusas com a mesma cor de pele que todas as outras mulheres da sala: branca.
Guiadas por tambores e maracas de origem indígena, Lavignia cantou por alguns minutos cânticos femininos como quem desejava nos “encantar”. Depois dos minutos iniciais, a roda se abriu com outro instrumento indígena, o “bastão da fala”, e as mulheres contaram suas dores que em sua maioria, giravam em torno de problemas de saúde, traições conjugais e desafios de maternidade.
Algumas coisas não se curam
Eu não sabia o que falar, e com um pouco de vergonha disse que estava lá para aprender. Lembrei imediatamente das minhas dores menstruais e achei que seria um espaço interessante para falar sobre elas, já que estávamos entre mulheres. Achei um pouco estranho que o acolhimento que recebi aconteceu em tom de repressão - seu sangue é sagrado e você não deveria reclamar dele.
Nunca reclamei do meu sangue, só da dor que sentia nos dias que ele estava presente. Me lembrei que mulheres são criadas para não reclamar e que em um país cristianizado, a culpa está dentro de todos nós.
Repleta de culpa cristã, persisti nessa roda por mais 3 encontros. Li “Mulheres que Correm com os Lobos”, livro que só me atravessou anos depois. Comprei o “oráculo das Deusas” e esperei fielmente pelo momento que iria aprender sobre como lutar pelos meus direitos e pelos direitos de outras mulheres nesse mundo.
No último encontro desse evento que virou um terror psicológico, realizamos uma meditação de cura pelos nossos pais afinal, em uma bolha pouco adepta da realidade social de outras mulheres, a cura é encontrável em qualquer contexto.
Aquela mesma mulher com os cabelos esvoaçantes que exalava a liberdade que só nós, mulheres brancas de classe média, sem filhos e pouca ou nenhuma responsabilidade de cuidado com dependentes poderiam ter, me contou que eu precisava curar o feminino através da relação com meu pai.
Se não pudesse fazer isso pessoalmente, deveria desculpa-lo mentalmente, e assim, minhas dores menstruais desapareceriam aos poucos. Pela primeira de muitas outras vezes em meu caminho, escutaria que tenho uma energia muito “masculina”.
Naquele dia senti que meus pensamentos circulavam superficialmente por palavras vazias. Não encontrei o pertencimento que buscava e passei a achar que deveria curar algo que provavelmente nunca irá se curar.
Indicações para além de “mulheres que correm com os lobos”:
Livro: O Calibã e a Bruxa - Silvia Federici
Livro: Quando Deus era mulher - Merli Stone
Curso Casa do Saber: Deusas, Bruxas e Feiticeiras - Julia Myara
Mulheres que encontrei pelo caminho, mulheres que encontrei dentro de mim
Quando eu digo que não me conectei com o sagrado feminino, não estou me referindo a o que realmente é sagrado em nós: simples e puramente nossa existência.
Aprender a ser mulher é um caminho que abro quando por muita vontade e também privilégio, posso olhar nos olhos de outras mulheres pelo mundo. E nesse caso, não só as que conheço e posso chamar de amigas - mas as que encontro pela estrada.


Às margens do Rio Negro, conheci Adriana, uma mulher que morava em uma comunidade ribeirinha a muitas horas de barco da cidade grande. Aprendi com ela que as mulheres prestes a parir por lá, são assistidas por uma parteira, que também é a benzedeira da região. As que não podem receber seus filhos de forma natural, precisam de uma viagem de lancha até o hospital mais próximo.
Também me recordo da adolescente que eu não consegui perguntar o nome e que me ofereceu absorventes quando esqueci de levar meu coletor menstrual para uma vivência no meio da floresta amazônica.
Ou até mesmo quando apliquei injeções de anticoncepcional em duas trabalhadoras na viagem de 7 dias de barco que fiz até a tríplice fronteira, em um quartinho apertado, utilizando “leite de rosas” pra fazer a assepsia.


E recentemente, quando conheci mulheres medicina - parteiras e curandeiras de uma comunidade do Lago Atitlán, na Guatemala.
Com elas, aprendi um sagrado rotineiro. E me recordei especialmente de minha bisavó que desejava conhecer o mundo com sua saia florida. Também lembrei com carinho de minha minha mãe, que abdicou de muitas aventuras na vida para cuidar de outras pessoas.

Aquí las que mandan son las mujeres
Enquanto escrevo esse texto, olho para a sacada do apartamento que ficarei esse mês em Cartagena de las Índias e penso novamente em minha mãe - faltam poucos dias para ela chegar e provavelmente, quando você ler essa carta, ela já estará viajando comigo pela Colômbia.
Cartagena é um dos lugares da América Latina que mais sofreu com a “Santa Inquisição”, o maior projeto histórico de feminicídio e tortura. Em Cartagena, assim como em muitos lugares do mundo, mulheres foram queimadas, torturadas e aprisionadas apenas por serem quem são. Unido ao fato de que aqui, as mulheres torturadas eram afro-caribenãs e muitas delas escravizadas, me recordo de que não sentir a mesma dor que outras mulheres sentiram e ainda sentem, não me impede de pensar o quanto é importante procurar espaços que não são hegemônicos como as rodas de sagrado feminino.
O feminino definitivamente é mais sagrado que o sagrado feminino. Me sinto degastada com os inúmeros conteúdos sobre machismo e submissão, disfarçados de cura. E apesar desse texto ser um alerta e um desabafo sobre espaços hegemônicos, precisamos tomar cuidado para não culpar as mulheres e suas tentativas de se encontrarem em diversos espaços, enquanto o vilão é outro.
Lavignia e o sagrado feminino também me ensinaram uma lição: no fim, estamos todas procurando um lugar para ocupar nesse mundo em que muito foi tirado de nós.
Se você chegou até esse texto, é mulher e alguma vez já participou de rodas e rituais de sagrado feminino, adoraria saber o que achou do texto. Se você se sentiu acolhida por esses grupos e faz parte de alguma dessas comunidades, fico muito feliz em saber que foi bem recebida: esse texto não é uma crítica as mulheres que frequentam rodas de sagrado feminino e sim, um lembrete sobre a importância de gestar redes de apoio que integrem também as questões sociais, econômicas, raciais e políticas de nós mulheres.
Com afeto, Gabi do raízes.
O sagrado feminino, coletivo Vênus etc. são como a constelação familiar: não têm subversão e cura, somente um moralismo perverso e cheio de estereótipos. Muito bom o teu texto, Gabi, e necessário! Abraços, Rô, de Porto Alegre.
Igual a tua busca, fui até um lugar assim procurando entender formas de ação coletiva para enfrentarmos juntas esse dia a dia insano, e uma dose de acolhimento para a minha dor menstrual. Encontrei soluções individuais tão superficiais que parecia que, se eu não encontrasse a cura, era porque eu não queria. Como curar meu lado masculino, como você ouviu, para me curar das dores menstruais... quando elas são genéticas e gerações da minha família sofreram com isso. Fui pesquisar, e são taaaantas mulheres sofrendo com isso que como pode a cura ser individual? Como essas reuniões incríveis entre mulheres não debatem movimentos de mudança coletiva palpável para além do "eu"? Confesso que não tive boas experiências, e que depois disso criei um bloqueio. Peguei pra mim que "não existe cura individual para problemas coletivos", e quero me aproximar de quem busca esse tipo de movimento também. Como tu 💛 saudades das nossas prosas em dias chuvosos ou no calor caribenho!