03# O que eu aprendi sobre o céu em uma viagem para o Peru
Coisas que a Europa não pode nos ensinar sobre os astros
Antes de começar esse texto, gostaria de lembrar que essa newsletter não é um conteúdo astrológico e sim, uma carta feita por uma astróloga viajantes que aprendeu muito sobre os astros graças aos países latinos que visita. Espero que você se sinta viajando pelo Perú também através desse texto!
Sobre Dinossauros e Incas
Eu sempre gostei de histórias antigas. Sinceramente, acredito que me tornei astróloga porque foi a melhor desculpa que encontrei para analisar ciclicamente o passado. Fui uma criança obcecada por dinossauros e pré-história. Aos 7 anos de idade, escutei pela primeira vez sobre os Incas e Machu Picchu. Não me recordo de qual fonte veio, mas sei que deve ter sido algum lugar que fantasiou e romantizou essa civilização ao ponto de fazer com que viajar para o Peru se tornasse o maior desejo no topo da lista do meu diário — acima até de ganhar a casa de praia da Barbie, que anos depois percebi que se assemelha muito às casas litorâneas da minha vida nômade.
Por muitos e muitos anos, estudei a civilização Inca, comprei e ganhei enciclopédias de viagem para o Peru e planejei uma viagem que, de tão sonhada, também foi postergada.
Depois de adulta, tive algumas chances de visitar esse país, mas não suportei que essa viagem acontecesse porque, para ser melhor do que era na minha cabeça, deveria ser também perfeita.
Planejei muitas férias, muitos formatos de viagem solo e inúmeras possibilidades de conhecer o Peru. Nenhuma dessas opções nutria meu sonho, então deixei para depois.
Em 2023, já em outra circunstância da minha vida como viajante, vivendo como nômade e me movimentando por fronteiras terrestres, não teria como adiar mais uma vez meus planos: eu chegaria ao país dos meus sonhos, preparada para isso ou não.
Por ironia e alegria do destino, conheci anos antes meu companheiro de vida, um viajante que, assim como eu, compartilhava o amor pela América Latina e a vontade de percorrer a mesma rota que eu. Unimos nossas mochilas no calor e amor que a Bahia pode dar e seguimos por todo o litoral do Nordeste, Amazônia, Colômbia, Equador e, finalmente, Peru.
Entre nossos maiores sonhos estava: viajar o máximo possível pelo Brasil, conhecer a Amazônia, cruzar a tríplice fronteira depois de uma viagem de barco de 7 dias pelo rio Amazonas e, finalmente, chegar ao Peru.
Norte do Perú: A astrologia que eu não sabia que existia
Poucas coisas na minha vida foram tão extasiantes quanto cruzar a fronteira do Equador com o Peru. Aquela placa, que passou rapidamente pelos meus olhos cansados de sonho e sono depois de horas de viagem de ônibus, marcou a realização de um desejo antigo. Foi também um sopro de coragem — uma coragem que, às vezes, nem eu acredito que mereça ter.
Essa mistura de agonia e felicidade logo deu lugar a tarefas grandiosas. Eu e Leandro, meu companheiro, tínhamos um objetivo: produzir um documentário sobre a cultura e as civilizações do norte do Peru, uma região pouco turística, especialmente se comparada ao impacto avassalador que a descoberta de Machu Picchu trouxe para a economia local.
Havia muito o que aprender e contar sobre essa terra que respirava um passado tão remoto, capaz de fazer os Incas — que chegaram séculos depois — parecerem uma civilização recente.
Para o documentário, procuramos um arqueólogo nas redes sociais. E para a alegria da Gabriela de 7 anos de idade, encontramos um homem que vivia ao lado de sua maior descoberta arqueológica: um sítio que abrigava o painel mais antigo da América do Sul e sobretudo desejava contar as histórias desse lugar.



Por falta de verba e interesse governamental, a monumental construção desse povo pré-incaico não foi completamente investigada. Mas, por sorte, Ignácio precisava falar, e muito.
Em uma excursão que durou a tarde inteira, entre ruínas e segredos do passado, descobri algo que jamais imaginaria sobre o céu - em um painel que narrava a linha do tempo dos povos que ali viviam, o arqueólogo correlacionou todos os tempos de civilizações com as eras astrológicas.
- A Era de Câncer e a migração dos homens pela água.
- A Era de Gêmeos e Sagitário marcou o início das religiões.
- A Era de Touro, matrilinear, e a relação próxima desses povos com a natureza e a necessidade de se fixarem.
- A Era de Áries e a descoberta do metal em conjunto com a criação de exércitos.
- A transição para a Era de Peixes e os sacrifícios pelo divino.
"Nada determina uma era, a não ser o tempo. Vivemos e, depois, contamos a história."
Foi ali que compreendi que o passado guarda as respostas para todas as perguntas sobre o céu e a Terra.
Ainda hoje, lembro da alegria e da curiosidade que me tomaram naquela paisagem desértica. Aquele foi sem dúvidas, um dos dias mais felizes da minha vida.
Huaraz: O cruzeiro do sul é nosso guia
Poucas vezes minha passagem por um lugar coincidiu tanto com o clima perfeito e as festividades locais como aconteceu no Peru. No dia 3 de maio, estávamos em Huaraz, uma cidade adorada por todo montanhista que se preze — e também por viajantes despreparadas como eu.
Em meio aos nevados e às paisagens deslumbrantes, participamos de uma celebração linda em homenagem a um dos maiores símbolos de proteção andina: a chakana.
“A chakana, também conhecida como cruz andina, é um símbolo de grande importância para as culturas originárias dos Andes. É uma cruz escalonada que representa a união entre o mundo humano e o cosmos.”
Entre os muitos significados de espiritualidade e conexão com a natureza que a chakana representa, o que mais marcou meu coração foi descobrir que ela também simboliza o Cruzeiro do Sul: a constelação que é visível apenas no hemisfério sul.



Os Incas e outros povos antigos já sabiam que essa constelação era especial.
Há relatos em todo o hemisfério sul, incluindo a Oceania, de que o Cruzeiro do Sul guiava viajantes por terra e água há milhares de anos.
Não é bonito pensar que existe uma constelação que é só nossa?
A festa em homenagem à chakana me lembrou que o nosso céu é potente e que, talvez, o resto do mundo não o conheça como deveria. Minha forma de celebrar essa constelação foi tatuá-la no braço, incluí-la na logo do Asas & Raízes e espalhar, para os quatro cantos do mundo, a mensagem de como o nosso céu é lindo nas bandas de cá.
Cusco e Valle Sagrado: Pesquisar não é o mesmo que ver com os próprios olhos
Um ônibus de 24 horas me levava de Lima para Cusco. Enquanto observava a janela daquela viagem interminável, pensava: "Será que vou gostar de estar aqui tanto quanto minha imaginação?" Antes de embarcar nesse ônibus, a companhia tirou uma foto de cada passageiro por motivos de segurança. Tenho certeza de que a minha saiu com os olhos marejados.
Entre templos destruídos pelos espanhóis, ruínas gigantescas, pedras de tamanhos colossais e alguns bons ângulos, os sítios arqueológicos, construídos em homenagem às constelações que faziam referência à natureza com alma deste lugar, me ensinaram uma lição: aprender não é o mesmo que ver com os próprios olhos.



Eu havia estudado e reconhecido cada nome e localização daqueles sítios, mas nunca soube o que seria estar ali, de fato. Por um momento, parei para apreciar a excursão escolar dentro de uma das ruínas mais imponentes de Cusco, a Sacsayhuamán, e pensei:
"Como reverenciaríamos o céu se aprendêssemos mais sobre a importância dele desde cedo?"
Cusco tem linhas marcadas nas calçadas que indicam as direções dos governos Incas — direções conquistadas graças à fixação deles pelos movimentos das estrelas.
Em um livro sobre a astronomia Inca que comecei a ler por lá, descobri que essas linhas se estendiam por todo o planeta conhecido por eles, com Cusco como ponto central (o "umbigo do mundo"), explicando a energia e a governança de cada lugar para esse povo.
Respirei aliviada, como quem encontra pertencimento: há muito, eles já falavam sobre nossa conexão com os lugares do mundo.
Toda essa narrativa me lembrou a astrologia e, especialmente, a astrocartografia. Para a astrologia, importa o nosso ponto de vista, a Terra. Já na astrocartografia, estamos conectados ao mundo todo por linhas invisíveis porém muito potentes.
Talvez, se eu não tivesse pisado naquela calçada marcada por essas direções, não teria compreendido. Definitivamente, pesquisar não é o mesmo que ver com os próprios olhos.
Inti Raymi: A maior festa do céu na América Latina
Eu nunca teria imaginado que um dia estaria presente na Festa do Sol. Mesmo sonhando tantas vezes com essa viagem, o Inti Raymi parecia tão distante quanto algumas festividades na Índia, que ainda desejo profundamente conhecer um dia.
Mas, como já compartilhei neste texto, valeu a pena esperar pela melhor época para conhecer o Peru. Não só pelas festividades, mas também porque diferente de quando planejava minhas viagens de férias, eu também cheguei lá como astróloga e não só como viajante.
“O Inti Raymi, que vem do quéchua e significa "Festa do Sol", é um festival religioso criado pelos Incas por volta de 1430, em homenagem a Inti, o deus-sol. Celebrado no dia 24 de junho, o evento marca o solstício de inverno do hemisfério sul — o dia em que o sol está mais afastado da Terra. Para os Incas, essa data também representava o início de um novo ano.”
Foi impossível não pensar que o tempo é essencial para nossa jornada, mas isso deixo para um próximo artigo sobre os Maias e o céu.
Durante quase um mês de desfiles e celebrações, percebi que não há apenas uma forma de celebrar o céu, como muitas vezes se imagina na astrologia eurocêntrica. Nossa visão astrológica precisa ter raízes ancestrais para se perpetuar, assim como a celebração do Deus Sol nas terras andinas.



Não é por acaso que o sol é celebrado por tantas culturas ao redor do mundo: aprender sobre ele é aprender o que realmente importa.
Pense comigo, que vale mais para uma geração: celebrar um astro que traz vida, que faz nossa comida brotar da Terra, que nutre nosso corpo, ou focar em “qual signo combina com o seu”?
Com todo o respeito aos fãs do “horoscopismo”, sem um propósito real em nossos estudos, não conseguiremos que os estudos astrológicos se perpetuem por tanto tempo como essa celebração andina.
No final dessa viagem, aprendi o que me torna a astróloga que sou hoje: estamos banalizando a astrologia porque esquecemos que olhar para o céu nunca foi um ato individual, mas sim coletivo.
Olhar para o nosso mapa como uma fonte de poder individual e único é mais uma dor deixada pelos invasores europeus. A astrologia se faz através dos ciclos coletivos, e como Ignácio, o arqueólogo que encontramos no norte do Perú, também nos ensinou:
“É disso que somos feitos”.
Se você gostou dessa viagem ao céu sulamericano, considere essas recomendações:
O documentário que produzimos no norte do Perú se chama: Caminhos Mochica e é parte do projeto Vozes da América, do meu companheiro
, você pode assistir na íntegra por aqui.Todos esses pensamentos fazem parte de um estudo de astronomia cultural e astrologia decolonial que desenvolvo. Se você ficou curiosa sobre o tema, acesse aqui e saiba mais.
Astrocartografia, o mapa astrológico que une viagens e astrologia é também meu trabalho em tempo integral. Graças à ele, posso descobrir mais céus por esse mundo.
Com afeto, Gabriela do raízes.
Fui transportado de volta com cada lembrança deliciosa que você compartilhou! Tão bom dividir caminhos contigo
Que delicia de texto, de visão bonita sobre o céu e suas ferramentas. Me senti de volta há 10 anos atrás no Peru, um país que tenho tanta vontade de voltar. Mais ainda pro norte dele. Obrigada pela partilha!