A primeira vez que ouvi os termos dismorfia corporal
, anorexia
e bulimia
eu tinha 13 anos. Nos últimos 2 anos, tinha emagrecido 12 quilos e lutava comigo mesma para manter os até então desconhecidos braços finos que exibia. Estava na casa de uma amiga querida e sua mãe, psicóloga, chegou em casa, tirou seus sapatos de salto alto, nos olhou assistindo “The OC” na TV da sala e falou:
— Oi, amores. Vocês estão bem? Gabi, como você está magra!
Automaticamente, eu abri um largo sorriso e agradeci, como de costume. Até que ela me respondeu:
— Isso não é um elogio. Tem certeza de que está tudo bem com você?
Naquela tarde, ouvi que me alimentar de maçã e passar 2 horas fazendo exercícios dentro do quarto por vergonha de ser vista por outras pessoas era perigoso e, especialmente, que bulímica não era “só” quem vomitava, mas também quem buscava se livrar da comida de alguma forma — como eu fazia quando escondia doces no meu guarda roupa porque acreditava que, se não fosse vista comendo, não engordaria.
Infelizmente, conheço poucas mulheres da minha idade que não experimentaram o efeito de crescer nos anos 2000 desejando ter um corpo magro que coubesse nas tantas receitas de felicidade oferecidas pelas revistas Capricho e Atrevida.
Antes de ter idade suficiente pra ser consumidora dessas revistas, meu corpo já era um problema — eu era comparada com primas que se desenvolveram antes de mim, com amigas da escola que sempre foram mais magras e até com bonecas “Eliana” que, na minha infância, eram vendidas do tamanho de uma criança de 7 anos, porém com seios grandes e barriga trincada.
Eu fui uma criança com um corpo normal. Isso mesmo, normal.
Tinha uma estatura mediana e meus exames de sangue eram perfeitos, apesar da quantidade de corticoide que eu tomava graças a uma severa tosse alérgica que me perseguia desde cedo. Meu corpo tinha as curvas que qualquer criança poderia ter e apesar disso, escutei algumas vezes que não era saudável.


Não era graciosa o suficiente para fazer balé, também não era magra para esportes que exigiam agilidade. Tive medo de atrapalhar as pessoas em esportes em grupo, aprendi que todos estavam competindo comigo e que, graças a quem eu era, jamais poderia fazer o que qualquer criança deseja mais do que tudo: brincar.
Meu corpo sempre foi inadequado e aprendi que a culpa era minha. Quando me tomei dessa culpa, eu e meu corpo chegamos à conclusão que só cabia a mim mudar. E então chegamos à anorexia, seguida por anos de privação alimentar, dietas malucas, comparação, frustração e nenhuma esperança para a mulher que eu via no espelho.
Quando compreendi, anos depois, a gravidade do que passei, perdi novamente o controle do meu corpo — mas, dessa vez, por deixá-lo à vontade demais com as crises de ansiedade e confortável demais com a sensação de que essa era quem eu era de verdade: alguém incapaz de se movimentar.
Em 2014, fiz uma viagem sozinha e, nela, descobri que, para ver o mundo por perspectivas bonitas, era necessário caminhar. Às vezes pular por algumas pedras, outras, atravessar um rio. Em alguns momentos, ver o mundo também exigia caminhar por muitos kms, fazer travessias, subir montanhas e escalar vulcões.
Ainda que eu não acreditasse que meu corpo era capaz de jogar vôlei, a vida me fez entender que meu corpo era incrível — porque poderia me levar para ver o mundo.
Por muito tempo eu sofri com o caminho, resquícios de uma infância e adolescência sedentária, deitada no sofá comendo um pacote de bolacha Trakinas por dia. Me lembro de que, mesmo praticando yoga há muito tempo, quando conheci meu companheiro, que passou a adolescência subindo a “Pedra Grande”, montanha famosa da sua cidade natal, briguei muitas vezes com ele por achar que não conseguia chegar em lugar nenhum que desejávamos explorar.


Viajar sozinha me lembrou que, parada, a imagem que eu via no espelho não condizia com tudo que meu corpo poderia fazer por mim. Mas foi caminhando acompanhada com uma pessoa que me lembrava todos os dias que era possível, que eu cheguei em tantos lugares com a força das minhas pernas de andarilha e coluna de mochileira.
O que nos contam sobre nós mesmas ressoa em todas as partes que somos.
Uma criança que escuta que esporte não é para ela demorará muito tempo para voltar a brincar novamente na vida adulta. Talvez, como eu, precisará escutar algo diferente sobre si para reaprender a andar de bicicleta ou se lembrar que existem motivos mais importantes para se exercitar — como saúde.
Depois de mudar as razões pelas quais eu desejava entender onde meu corpo poderia chegar, graças à vida nômade, passei também a sonhar novos sonhos com meu corpo:
Reaprendi a andar de bicicleta na orla de Salvador para que fosse possível conhecer a cidade em pouco tempo.
Subi montanhas na altitude porque a sensação de entrar em uma ruína inca no Peru era maior que qualquer desconforto.
Encarei a travessia do Vale do Pati porque, depois de tantas vidas na Bahia, precisava me reencontrar com esse estado que mudou minha vida.
E, mais recentemente, cerca de 1 ano atrás, encarei o compromisso de fazer academia para subir um vulcão ativo na Guatemala.



A vida tem suas reviravoltas e eu não subi nesse vulcão, mas me apaixonei pela possibilidade de me exercitar em diversos lugares do mundo. Desde fevereiro do ano passado, conheci 23 academias pela América Latina, fazendo pacotes de 1 semana, 15 dias ou 1 mês.
Mas, recentemente, também parei de fumar para me sentir melhor enquanto fortaleço minhas pernas que sobem montanhas e meu tronco que carrega uma casa nas costas.


Senti que músculos dão mais que contornos bonitos pro corpo — dão força. E uma mulher precisa se sentir forte nessa vida.
Sinceramente, ainda me olho no espelho e enxergo a garotinha que era desrespeitada dentro do seu próprio corpo. Acho que nunca mais conseguirei me pesar em uma balança de farmácia e faço exercício ouvindo podcasts sobre ter uma relação saudável com o corpo, para não esquecer meus “porquês”.
Apesar das marcas que nunca irão embora, o movimento me deu uma chance de olhar onde eu e meu corpo podemos chegar.
O culto à magreza passou das revistas Capricho para o “magras, magras, magras” do TikTok. Não é mais legalizado falar sobre o corpo de outra pessoa, mas inventaram muitas fórmulas e trends que incentivam o corpo padrão. Especialmente se você for mulher, o patriarcado e o capitalismo nunca te deixarão em paz.
Meu desejo é que encontremos nossos porquês, para amar tudo que somos capazes de fazer e todos os lugares que somos capazes de chegar, ainda que ninguém nos lembre disso.
Para apoiar suas reflexões:
Artigo: Corpo e Gênero: Revista Capricho e a produção de corpos
Podcast Bom dia Obvius: #228 Uma nova relação com a comida com Vanessa Tomasi
Série This Is Us e a complexa relação entre a violência dos corpos por estética e padronização, em ambientes familiares.
Se esse texto te tocou de alguma forma, adoraria saber sobre sua experiência nos comentários, para movimentarmos também nossos sentimentos e nos curar coletivamente.
Com afeto, Gabi do raízes.
lembro de épocas da infância que passei por essa necessidade de caber nos padrões, ter pouco peito, muita bunda, barriga sequinha. mas também nunca fui padrão e não me fazia bem ficar bitolada na balança e na beleza (em casa se falava muito de estar bem arrumada, maquiada, depilada...).
hoje tenho bastante dificuldade de voltar pra academia e respeitar meu corpo quando ele pede pela yoga (coisa que fazia muito antes de começar a mochilar 1 ano atrás). por outro lado, tenho muito essa questão de me sentir forte como mulher pra fazer as trilhas que quero e, principalmente, me sentir segura no mundo.
tema de terapia da última semana, inclusive. gratidão por esse texto, ótimo demais conhecer mais de você e me reconhecer na história de outra mulher, com semelhanças e diferenças. 💙🥹
Orgulho de você e de onde você consegue chegar <3